Professor
Orientador: Henri de Carvalho
Aluno:
Francisco Pedro da Silva
Ao
observarmos os eventos entorno da comemoração dos 500 anos do Brasil no ano 2000,
percebemos o quanto esta temática ainda possui muito a se explorar. No estudo
em questão, religião e estado são capazes de cometerem as maiores atrocidades
em nome do progresso. Este tema também permeia a questão indígena, que completa
os elementos expressos nas pinturas homônimas “Primeira Missa no Brasil” de
Victor Meirelles e Cândido Portinari. Com formação em Teologia Livre e
graduando em História, muito me interessa este assunto que tantos no círculo
religioso evitam discutir. Essa análise comparativa nos permitirá compreender
melhor a formação da sociedade brasileira, sua cultura e política, fazendo uso
de conhecimentos fundamentados historicamente. Ao final deste trabalho pretendemos
obter respostas para algumas inquietações que não são apenas pessoais, ainda
que para isso devamos confrontar as contradições e anacronismos postos e
impostos durante nossa formação.
Os objetos escolhidos são
relevantes porque representam as duas faces de poder, religiosa e política, e
como se tem interpretado essa relação desde 1500, partindo de representações
feitas por artistas dos séculos XIX e XX. São duas representações muito
diferentes, pois poderemos analisar como dois artistas com bases teóricas
distintas puderam ter compreensões tão diferentes de um mesmo evento.
A importância desse tema na
atualidade é grande, visto que a religião tem grande influência mesmo que o
Brasil seja um Estado laico. Acompanhamos na mídia os acontecimentos ocorridos
na bancada evangélica, que contradiz a laicidade proposta e fere a Comissão de
Direitos Humanos. Também podemos questionar o uso de objetos religiosos em
lugares públicos como Câmara de Deputados, Universidades, Escolas, Hospitais,
entre outros. Há uma laicidade no Brasil ou nessa relação alguns grupos são
favorecidos? Exemplo disso é a tal bancada Evangélica, que deveria ser uma
bancada “religiosa”, observando o Estado laico brasileiro.
Muitos autores já
pesquisaram sobre esta temática, dentre eles Darcy Ribeiro na sua obra “O Povo
Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil”, José T. M. Menk no artigo “A
primeira missa no Brasil: a origem das relações igreja estado no sistema
jurídico institucional brasileiro até o século XIX”, e Boris Fausto em seu
livro “História Concisa do Brasil”. Cada autor tem sua própria linha de
pesquisa e contribui direta ou indiretamente para este trabalho com abordagens
diferenciadas, devido a formação ideológica de cada um deles.
É
um assunto a se explorar, principalmente sob a ótica que pretendo abordar
fazendo comparação entre os pensamentos que foram elaborados no século XIX e XX.
Considerando que o autor do século XIX tem uma postura nacionalista, enquanto
que o autor do século XX possui uma postura comunista, e ambos influenciados
pelos valores e ideologias de seus respectivos períodos. Acredito que esse
pequeno recorte poderá trazer novos diálogos para o assunto proposto.
Essa pesquisa pode
contribuir em diversos aspectos, mas acredito que sua comparação com outros trabalhos,
que a partir dos mesmos objetos de estudo, poderá oferecer novas possibilidades
de análises comparativas dos documentos primários, secundários, e discussões
bibliográficas.
Os objetos de pesquisa são
importantes para minha área de estudo porque eles demonstram em sua
particularidade pensamentos de épocas diferentes. E apenas entendendo como as
pessoas pensavam através de suas obras, sejam elas pinturas, textos, esculturas,
músicas, é que conseguiremos nos aproximar de determinados contextos históricos,
correndo menos risco de cometer anacronismos, podendo assim compreender melhor
fatos passados e presentes relacionados.
Em
caráter universal a importância deste trabalho é a discussão sobre as forças de
domínio existentes no Brasil que podem ser percebidas através das obras de arte
em estudo neste trabalho.
Os objetos de estudo neste
trabalho são as pinturas homônimas “Primeira Missa no Brasil” de Victor
Meirelles e Cândido Portinari. A problemática apresentada refere-se ao que
significou a primeira missa no Brasil nos âmbitos político e religioso sob o
ponto de vista de dois artistas com valores diferentes, separados por quase um
século (88 anos). Para tanto, antes é necessário a apresentação dos respectivos
contextos históricos de cada um deles e também das análises imanentes dos
documentos primários como segue abaixo.
Historiografia,
autores e obras
Nos anos de 1500 a Europa
passava por uma crise geral. Boris Fausto explica que e a posição geográfica de
Portugal lhe permitiu lançar-se além do Oceano Atlântico para inclusive ampliar
seus domínios. Portugal possuía então essa tendência de voltar-se para fora que
também advinha da experiência comercial e tecnológica acumulada ao longo dos
séculos XIII e XIV.
No dia 22 de abril de 1500,
Pedro Álvares Cabral e sua tripulação celebram a primeira missa em terras que
mais tarde se chamariam de Brasil. A monarquia portuguesa trouxe consigo a
religião católica que se mesclava com a política seguindo o modelo medieval
europeu. Essa missa representou por muito tempo no imaginário coletivo o mito
fundador. Ocorreu então a conquista de uma terra próspera habitada por uma
população ameríndia bastante homogênea em termos culturais e linguísticos que
se encontrava na costa brasileira, nativos que sequer se importavam com as
riquezas naturais que os portugueses pretendiam tomar.
Pero Vaz de Caminha é o
primeiro a relatar essa chegada em sua carta ao rei de Portugal. Caminha
escreve que os índios admiraram-se dos portugueses, trocaram objetos e lhes
indicaram onde havia ouro. Outra característica da carta é a presença do aparato
religioso como ferramenta ideológica para salvar os índios. Porém houve um
grande impacto durante este evento, até certo ponto muito semelhante ao
ocorrido quando Colombo chega à América em 1492, como bem relata Todorov observando
os diários de Colombo e outros documentos.
Segundo Darcy Ribeiro, esse
impacto foi determinante no que seria o curso natural dos nativos. Portugal
implantou diversas colônias de exploração e iniciou-se um processo de tomada
dos bens naturais, inicialmente o pau-brasil, depois o ouro, depois cana de
açúcar, depois café, conforme a necessidade dos compradores internacionais. A
Ordem dos Jesuítas que chegou junto com Cabral tinha o objetivo de catequizar
os índios, e paralelamente a isso os africanos eram utilizados como escravos.
No século XIX ocorreu a
independência do Brasil resultante de um processo que incluiu inicialmente a
mudança do reinado português para o Brasil em 1808. Essa mudança contribuiu
para uma ruptura que lançou o Brasil a alguns períodos específicos. De 1500 até
1822 temos o Brasil colonial; de 1822 até 1889 temos o Brasil monárquico; de
1889 até 1930 temos a Primeira República; de 1930 até 1945 temos o Estado
Getulista; de 1945 até 1964 temos a Experiência Democrática; e de 1964 até 1984
temos o Regime Militar e a transição para a Democracia definitivamente. Victor
Meirelles realizou sua obra durante o período monárquico em 1860, já Portinari
realizou a sua no período de experiência democrática em 1948. São dois períodos
em que o Brasil sofria metamorfoses culturais e políticas em sua definição de Estado
independente, e isso influenciou a vida e obra dos artistas como observaremos a
partir de agora.
Durante o Brasil Monárquico,
consolidou-se a Independência e a construção do Estado. Em 1824 os Estados
Unidos reconheceram sua independência, em 1826 o Brasil também formalizou o
reconhecimento de sua independência. Neste período ocorreu também a
independência de outras colônias na América. Após a independência do Brasil, o
governo brasileiro era dependente da Inglaterra, que objetivava colocar fim ao
tráfico de escravos africanos, o que resultou em uma grande imigração de
trabalhadores livres para o Brasil durante a modernização e expansão cafeeira.
Victor Meirelles de Lima,
nascido em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis nasceu em 1832. Seu
pai era um imigrante português chamado Antônio Meirelles de Lima e sua mãe era
uma brasileira chamada Maria da Conceição. Victor Meirelles era pintor,
desenhista e professor. Iniciou sua carreira realizando pinturas de paisagens
da cidade. Frequentou a Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, e
aos vinte anos foi premiado para viajar à Europa. Morou na Itália e na França
de 1853 a 1861, dedicou-se ao estudo e trabalho. Depois se tornou professor
honorário na Academia de Belas Artes lecionando pintura histórica e também foi
professor do Liceu de Artes e Ofícios no Rio do Janeiro. Realizou quadros
históricos, retratos, panoramas, mas dentre toda sua obra, uma das mais
populares é a “Primeira Missa no Brasil”, que foi exposta em Paris em 1861.
Meirelles utilizou como base para essa pintura, a carta de Caminha.
Seu estilo é eclético, mas
pertence ao romantismo com traços do Barroco e Neoclassicismo. Devido ao período
monárquico, Meirelles pintou este tema valorizando os elementos religiosos,
pois era um dos pintores preferidos de Dom Pedro II que o introduziu ao
mecenato, cuja proposta era renovar a imagem do Brasil através de símbolos
visuais da história. Com a mudança da Monarquia para a República, Meirelles
terminou sua carreira no esquecimento, pois estava muito vinculado ao Império. Faleceu
em fevereiro de 1903 com 70 anos.
No geral a pintura é mais
clara no centro e escura nas laterais e em baixo. No canto superior esquerdo há
apenas um fundo azul do céu contendo mais abaixo uns coqueiros e bem ao fundo
em tons mais claros uma região mais elevada, talvez uma cadeia de montanhas. Ao
pé do coqueiro que está mais próximo há pessoas que parecem acenar com uma das
mãos, possivelmente chamando a multidão de índios que surge da floresta
representada deste lado da pintura.
Ainda do lado esquerdo, mas
abaixo da metade da altura na pintura podemos ver a multidão de índios mais
próxima, destacados na frente há um casal, o homem usa um cocar e um colar, e a
mulher usa um colar, e uma criança sendo empurrada pelo avanço da multidão.
Esses índios se aproximam como numa marcha levantando uma poeira avermelhada
que encobre suas pernas. Na frente, um homem de braços levantados, ele também
usa cocar, colar, e penas na linha da cintura. Na parte inferior esquerda há
apenas o chão com uns cactos rasteiros, uma espécie de capim, e algumas pedras.
Aproximando-se
do centro da pintura observamos algumas árvores ao fundo, cobrindo as montanhas
distantes. A sombra em suas folhas sugere uma iluminação lateral, o que poderia
indicar entre 9 ou 15 horas dependendo da localização. Na frente das árvores há
uma cruz de madeira com aproximadamente 3 metros de altura e iluminada
horizontalmente, semelhante ao ângulo de luz das árvores ao fundo. A cruz está
em cima de um altar quadrado de cor salmão, em cima do altar há duas toalhas
brancas sobrepostas, elas possuem detalhes rendados de cor dourada nas bordas,
e abaixo do altar, dois degraus. Um grande livro aos pés da cruz, alguns
arranjos de flores e folhas, duas velas finas e cumpridas e um crucifixo.
Podemos ver um sacerdote
principal que de frente para a cruz, olha para ela de cabeça erguida e em pé,
levantando em suas mãos um cálice dourado. Ele usa uma roupa longa e branca com
detalhes dourados na capa ode há uma enorme cruz dourada estampada, e um capuz
marrom pendurado atrás da cabeça e está de sandálias. Este homem é barbudo e
com os cabelos apenas nas laterais e atrás da cabeça.
Atrás desse sacerdote há
outro que segura a ponta de sua capa enquanto olha para baixo ajoelhado. Este
usa um traje branco, mas com a touca pendurada nas costas e a parte debaixo num
tom marrom escuro, também usa sandálias. Sua barba e cabelo são semelhantes ao
que está a sua frente. Ao lado esquerdo desse segundo sacerdote, no primeiro
degrau há uma bandeja com dois pequenos jarros transparentes, um deles contém
um líquido vermelho. Abaixo deles há uma espécie de baú de madeira aberto, sua
tampa é arredondada, dentro há alguns tecidos de cor dourada e vermelha. Atrás
deste baú, como que escorando a tampa há outro baú menor, de metal. Encostado
nos dois baús há uma espada em forma de cruz, e ao lado um tapete azul e vermelho
com um jarro acobreado. Essa parte da cruz com os sacerdotes e os baús é a mais
clara da pintura, o sol parecer bater quase a pino, é próximo do meio-dia,
entre 10 e 14 horas.
Ainda
nesta parte central, à sombra do altar do lado esquerdo há alguns homens de
cabeça baixa como que em reverência, um em pé, os outros ajoelhados. O que está
de pé usa roupa vermelha e segura seu chapéu na mão. Esses homens estão na
sombra da cruz e do altar. À direita deles há três homens de preto ajoelhados,
da esquerda para a direita: o primeiro está segurando uma bandeira e usa uma
armadura que é perceptível porque aparece seu braço reluzente; o segundo tem um
corte de cabelo raspado em cima da cabeça e com cabelo apenas em volta; e o que
está mais próximo do centro está prostrado.
Continuando a descrição da
parte central, na direita de cima para baixo há o céu, montanhas ao fundo,
árvores, a iluminação é lateral. No local atrás dos sacerdotes há uma multidão
rezando, os do fundo estão na sombra, os da frente estão ajoelhados. Bem mais
ao fundo é possível ver mais índios, mas olhando para o lado direito da imagem.
Entre esses da frente destacamos da esquerda para direita alguns homens de
preto, outros de branco com detalhes dourados, um com a capa vermelha, e atrás
deste, um homem com roupas escuras, marrom e azul, com capuz, há uma espada
pendurada em sua cintura. Há também dois homens de armadura, estes estão em pé,
e um deles segura uma lança.
Na
parte de baixo no centro da imagem há algumas folhas grandes de uma planta
rasteira, a direita um índio quase de costas com os cabelos longos e grisalhos
e apontando com a mão esquerda para o outro lado, onde estão os homens de
armadura. Esse índio grisalho parece estar completamente nu, porém as folhas
encobrem suas partes baixas. Em seus braços há como que pinturas na pele. Com a
mão direita ele abraça uma índia que parece usar apenas uma pulseira e algumas
penas cobrindo a região íntima. Ela está com a mão direita no queixo e mesmo
estando quase de costas, sua expressão corporal é de surpresa, admiração. Seus
cabelos são negros e estão trançados até abaixo da cintura e seu seio direito
aparece sutilmente no movimento que faz ao levantar o braço. Acima do seu
calcanhar há uma pintura na pele, são três riscos que dão a volta na perna.
Seguindo para a direita
vemos alguns índios numa área mais escura, talvez a sombra de uma árvore, são
homens e mulheres, uma delas segura uma criança pelos braços nas costas. Um dos
índios usa um pequeno cocar e parece ter algo abaixo da boca, talvez um objeto
pontiagudo atravessado na pele. Ao que parece todos estes possuem algum tipo de
pintura na pele. Olham para todos os lados parecendo admirados e confusos.
Saltando da sombra é possível ver a perna esquerda de uma índia que está
sentada, quase deitada no chão. É uma perna bem torneada e o restante do seu
corpo está na sombra. Seu seio esquerdo está a mostra e parece haver uma
criança mamando nele.
No
canto superior direito da imagem há uma grande árvore, suas folhas se estendem
até quase o centro da pintura. Além da folhagem natural, parece haver nos
galhos outras folhas diferentes, possivelmente trepadeiras. Ainda nos galhos
podemos observar dois índios. Um deles está de costas para a cena central e
parece tentar equilibrar-se. O outro mais próximo do centro está olhando para o
evento principal no centro da pintura. Ele tem longos cabelos pretos e usa
apenas uma vestimenta de penas ou folhas verdes, amarelas e vermelhas na linha
da cintura. Abaixo desse índio podemos ver bem ao fundo a praia e os navios.
No canto inferior direito há
mais alguns índios ao pé da árvore. Em destaque um casal com uma criança, o
casal parece conversar, estão vestidos com penas vermelhas e verdes nas partes
baixas. A mulher usa alguma coisa pendurada na orelha e o homem usa um cocar de
penas vermelhas, laranjas e azuis. Sua cabeça está voltada para trás enquanto
fala com a mulher, mas seu braço esquerdo parece apontar para a cruz. Seu braço
direito segura um pedaço de madeira em cima do ombro, talvez uma arma. A criança,
logo abaixo deles, olha para trás com expressão de medo e abraça a mulher. Os
três possuem alguns desenhos pelo corpo, sendo que o homem possui desenhos
inclusive no rosto.
Menos destacado podemos ver
o índio guerreiro. Ele está de costas para o evento em destaque na pintura, seu
rosto e a parte de cima do peito, seu ombro, e parte do braço direito estão
obscurecidos por uma sombra mais forte. Ainda assim é possível perceber um
grande cocar, talvez o maior dentre todos os índios da imagem. Ele usa penas de
várias cores penduradas na linha da cintura e segura uma lança, objeto que
parece tentar esconder. Em seu braço direito e no rosto parece haver algumas
pinturas. Abaixo dele apenas um chão de pedra com algumas pedrinhas, conchas e
atrás uma folhagem rasteira.
Esses índios não aparecem na
obra final de Portinari e há inúmeros motivos externos e internos que podem ter
influenciado o artista neste ponto. No século XX ocorreu a experiência democrática
no Brasil. Getúlio Vargas acabara de cair e foi acordado pelo Supremo Tribunal
Federal a eleição em que o povo escolheria seu próximo presidente em 1945. Às
vésperas das eleições, Getúlio declarou apoio à candidatura de Dutra,
ressalvando que se o presidente eleito não cumprisse os compromissos, Getúlio
ficaria do lado do povo. A população votou tão massivamente que se mostrou a
forçado povo. Durante o governo Dutra começou a repressão ao Partido Comunista.
Em 1947, a partir de denúncias de dois deputados, o Supremo Tribunal Federal
decidiu a cassação do registro do Partido Comunista, que se tornou clandestino
em 1948, ano em que Portinari realizou sua obra em análise.
Candido Portinari nasceu em
30 de dezembro de 1903 numa fazenda de café próxima a Brodowski em São Paulo. Seus
pais eram imigrantes italianos pobres, e Portinari recebeu apenas a educação
primária, apesar de já demonstrar habilidades artísticas aos 9 anos. Aos 15
anos partiu para o Rio de Janeiro para estudar na Escola Nacional de Belas
Artes e em 1928 ganhou um prêmio de viagem a Europa. Ao voltar para o Brasil em
1931, estava decidido a pintar sobre a história, o povo, a cultura, a alma
brasileira. Com as cores fortes mostrava a pobreza, as dificuldades e a dor, e
essa mistura superava seu academicismo dando origem a uma experimentação
moderna.
Era companheiro de poetas,
escritores, jornalistas e diplomatas, participando da elite intelectual
brasileira neste período em que grandes mudanças ocorriam. Este seleto grupo
refletia sobre problemas do mundo e como isso afetava a realidade nacional, então
Portinari tornou-se um militante político filiado ao Partido Comunista. Porém
não conseguiu se eleger nem como deputado federal, nem como senador por uma
pequena diferença de votos e exilou-se no Uruguai por algum tempo devido a
repressão política, há suspeita de fraudes nas eleições por conta das
perseguições ao seu partido. Já como artista, alcançou reconhecimento nacional
e depois internacional, ganhando vários prêmios. Faleceu em fevereiro de 1962 de
intoxicação pelas tintas, segundo alguns historiadores, sofria de claustrofobia
e desmaiava com frequência nos locais de trabalho.
Análise da pintura “Primeira
Missa no Brasil” (1948) de Cândido Portinari, têmpera sobre tela:
Da esquerda para a direita
podemos ver a primeira coluna de cor marrom escura e a sua frente um soldado quase
de costas, levemente direcionado para o centro da imagem segurando uma lança
com a mão esquerda. Esta mão não aparece porque está atrás do soldado,
considerando que sua frente não está visível. Ele usa capacete arredondado
brilhante e está em pé e firme, olhando atentamente para a cena que ocorre no
centro da pintura. O cabelo na nuca está a mostra e há uma barba, que pode
também ser uma extensão do capacete em volta do rosto. Há uma parte de metal na
região do peito, nos ombros outro tipo de material vermelho escuro com
detalhes, uma malha lilás no restante do braço e uma luva cinza grossa por
cima. Sua calça é cinza escuro e usa uma espécie de bota.
Seguindo para a direita há
alguém ajoelhado, é um homem barbudo vestindo uma roupa lilás e um manto
branco, há algo amarelo dourado em sua cabeça. Ele parece segurar um lenço nas
mãos atrás dele está a segunda coluna já
mencionada. Entre este homem e o descrito anteriormente há um detalhe com outro
desenho sobreposto, parecem duas mãos com uma roupa azul até próximo dos dedos.
Ao lado desta segunda coluna há no fundo um grupo de pessoas ajoelhadas
vestindo roupa branca. Atrás delas há o que parece ser o mar, uma montanha do
outro lado, e acima o céu.
Quase no centro a figura há
outro grupo de homens ajoelhados, usam vestes marrons e uma corda amarrada na
altura da cintura. Eles estão de costas para quem vê a imagem, mas de frente
para a cena principal que logo descreverei. Neste grupo há oito homens, quatro
atrás dos outros quatro. Os que estão atrás deixam visíveis os pés, os dois
primeiros estão com os pés mais juntos enquanto que os outros dois estão com os
pés mais separados. Ao lado deles há um baú aberto com um grande tecido verde
colocado em parte para fora do baú.
No centro da imagem ocorre o
evento principal. Há um altar quadrado com uma sombra em formato de cruz, em
cima dele há um arranjo de folhas, um livro, um sacerdote erguendo um cálice e
usando um vestido com detalhes nas partes baixas, uma cruz vermelha nas costas,
e uma fita grossa envolta ao braço esquerdo. Atrás dele há outro sacerdote
ajoelhado e rezando. Este altar central está em cima de uma base quadrada que
dá impressão de ter um degrau em volta dele, destacando a cena. Atrás do altar
está a terceira coluna marrom já mencionada, e a continuação do mar, montanhas
e céu.
No lado direito da imagem
observamos vários agrupamentos de pessoas ajoelhadas. No fundo ao centro um
grupo além de ajoelhado segura lanças com as pontas apontando para cima. Ainda
no fundo há outro grupo e entre eles há uma bandeira branca com uma cruz
vermelha sob um mastro azul escuro. No canto há a quarta coluna onde outro
grupo quase imperceptível tem um de seus componentes segurando uma lança com a
ponta para cima.
A frente deste último grupo
há o que se parece um grupo de pessoas usando vestes transparentes, cada um de
uma cor, mas eles são brancos, e as cabeças parecem caveiras olhando para cima.
Mais a frente o grupo mais próximo de quem vê a pintura, são homens venerando a
cena principal, alguns de chapéu, outros de cabelo comprido, e o mais próximo
de cabelo curto segurando um lenço, esfregando-o no rosto. Atrás dele um homem
parece admirado, a atrás deste outro, um com olhar desesperador.
Percebemos como é diferente a
primeira missa aos olhos de Meirelles e de Portinari, e isso é notório na forma
com que cada um deles expressou esse momento histórico, a maneira como materializam
suas emoções e ideologias. Em cada mínimo detalhe artístico é transmitido da
individualidade dos autores na forma de uma particularidade que nos afirma a
riqueza da obra de arte em si. Nos personagens e objetos representados podemos
perceber elementos que nos ajudarão a compreender as obras. E mais que isso,
compreender as relações de poder decorrente desses dois momentos específicos
nas duas interpretações da “Primeira Missa no Brasil”.
Faremos um diálogo
bibliográfico a fim de melhor compreendermos a expressão das particularidades
históricas do Brasil nos séculos XIX e XX representadas nas obras homônimas “Primeira
Missa no Brasil” de Meirelles e Portinari. O diálogo se dará da seguinte forma:
primeiramente discorreremos algumas questões de estética; em segundo lugar
abordaremos os contextos históricos dos principais momentos; em terceiro lugar compararemos
alguns elementos nas duas imagens problematizando algumas questões com eventos
mais atuais.
A importância da estética na interpretação
histórica
George Lukács escreve que “(...)
A particularidade é sob tal forma fixada que não mais pode ser superada: sob
ela se funda o mundo formal das obras de arte. O processo pelo qual as
categorias se resolvem e se transformam uma na outra sofre alteração: tanto a
singularidade quanto a universalidade aparecem sempre superadas na particularidade.”
(LUKÁCS, 1978, p. 161)
Neste trecho Lukács explica
que a particularidade é a superação da singularidade e da universalidade. O que
há de particular em uma obra de arte é a superação da singularidade do autor em
experiência com a universalidade do mundo. Logo, o que vemos numa obra é
resultado da vida do autor em determinado contexto histórico, neste caso, sua
relação com o evento denominado “Primeira Missa no Brasil”.
Gombrich escreve que “Uma
coisa que realmente não existe
é aquilo a que se dá o nome de Arte. Existem somente artistas. Outrora, eram
homens que apanhavam terra colorida e modelavam toscamente as formas de um
bisão na parede de uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e desenham
cartazes para os tapumes; (...) Não prejudica ninguém chamar a todas essas atividades arte, desde que
conservemos em mente que tal palavra pode significar coisas muito diferentes,
em tempos e lugares diferentes, (...)” (GOMBRICH, 2000, p. 15)
O autor afirma que a arte não existe, mas sim os
artistas. Discorre sobre o caminho percorrido pelas representações artísticas
desde as pinturas nas cavernas até as mais sofisticadas que se diferenciam
entre si, mas que em suma nada mais são que a técnica disponível em cada
momento histórico, segundo seus padrões de beleza. Sendo assim podemos supor
que apesar dos objetos de estudo desta pesquisa serem duas pinturas, o que está
em análise aqui são na verdade seus autores.
Gombrich escreve também que: “O problema com a beleza é
que gostos e padrões do que é belo variam imensamente.” (GOMBRICH, 2000, p. 20).
As duas pinturas, tanto a de Meirelles como a de Portinari são muito
diferentes. Para alguns a primeira é mais bela, para outros é a segunda. Porém
o que temos por padrão de beleza é muito variável dependendo de cada contexto,
do que cada sociedade ou classe social consegue ler.
Gombrich escreve ainda que “O que ocorre com a beleza
ocorre também com a expressão. (...) a expressão de uma figura na pintura que
nos leva a gostar da obra ou detestá-la.” (GOMBRICH, 2000, p. 23). Considerando
o que as das duas obras significaram cada uma para seu tempo, devemos
interpretar o que nos expressam hoje. Gostar ou detestar da obra depende do
referencial que temos por beleza. A pintura de Meirelles é mais realista
enquanto que a de Portinari é “quadrada”. Isso naturalmente levaria muitos a
simpatizarem com a pintura de Meirelles por se parecer mais com a realidade,
enquanto que, para compreender Portinari se faz necessário um repertório maior
de conhecimento artístico. As formas e cores de Portinari remetem a obscuridade
e dureza, e talvez seja essa a emoção que o autor quis provocar.
Analisemos mais um trecho de Gombrich onde ele escreve
que “Existem duas coisas, portanto, que nos devemos perguntar sempre se
acharmos falhas na exatidão de um quadro. Uma é se o artista não teria suas
razões para mudar a aparência daquilo que viu.” E continua “(...) A outra é que
nunca deveríamos condenar uma obra por estar incorretamente desenhada, a menos
que tenhamos a profunda convicção de
estarmos certos e
o pintor errado.” (GOMBRICH, 2000, p. 27)
Partindo dessa afirmação de Gombrich podemos supor que nosso
entendimento sobre determinada obra de arte deve partir do que o artista quis
expressar, e compreender que o artista é a grande questão. Meirelles pintou sua
obra em 1860 e Portinari pintou sua obra em 1948, 88 anos depois, temos aqui
dois homens com valores diferentes e em contextos históricos diferentes que só
podem ser compreendidos se nos aprofundarmos na época em que cada um deles
viveu. Considerando que Gombrich e Lukács possuem diferentes linhas teóricas, ainda assim podemos afirmar que as obras de artes tem muito a nos dizer por serem documentos históricos que merecem nossa análise utilizando todos os recursos possíveis a fim de levantar hipóteses. As duas obras são diferentes, isso já
percebemos, mas porque cada um dos artistas fez como fez? Um deles está certo e o
outro errado? Talvez cada um esteja certo dentro de seu próprio contexto
histórico e ideologia.
Diálogo
com a historiografia
Em seu artigo, o advogado Menk
preocupa-se em narrar os eventos que ilustram o relacionamento da Igreja
Católica com o Estado luso-brasileiro, partindo de uma análise da pintura
“Primeira Missa no Brasil” de Victor Meirelles. Menk faz uso da carta de Pero
Vaz de Caminha, fonte descritiva para a pintura de Meirelles. Para Menk, a
primeira missa representou muito mais que um ato religioso, e sim uma cerimônia
que legitimava a aquisição das novas terras para o reino de Portugal. O autor
discorre sobre as consequências decorrentes da Independência e faz reflexão a
respeito da posição jurídica da Igreja no Brasil. Utiliza-se de artigos da
constituição para embasar suas indagações e escreve que a obra: “(...) é um
verdadeiro ícone formador do nosso imaginário coletivo. (...) ela procura
retratar, dentro de uma visão romântica, imaginada pelo autor, um dos momentos
fundamentais da história do país.” (MENK, 2011, p. 67)
“(...) Portinari não é, no
entanto, desprovido de originalidade. Seu diálogo com as obras de outros
artistas, (...), não tem nada de servil ou plagiário: Portinari, “quando
emprega esses elementos, não apenas os torna próprios dele como os torna
próprios do quadro (...)”.” (FABRIS, 1995, p. 18-9). Portinari também pintava
temas já abordados por outros artistas, mesmo assim o crítico Andrade exalta
sua originalidade explicitando o caráter singular de suas obras. Diferente de
Meirelles, Portinari ignora as informações da carta de Caminha e realiza uma
obra sobre o mesmo tema, porém livre de qualquer influência, ao contrário,
diferente propositadamente.
Menk escreve também que “(...)
os monarcas de Portugal passaram a exercer, ao mesmo tempo, o poder de ordem
civil e eclesiástica em seus territórios. Poder este estendido a todas as
conquistas e domínios ultramarinos, onde a implantação da fé católica acabou
por se confundir com a consolidação do poder temporal de Portugal.” (MENK, 2011,
p. 44). Podemos observar que este autor consegue fazer uma estreita ligação
entre religião e estado.
Darcy escreve que: “Afirmam
até que a religião católica e a língua portuguesa contribuíram para o
subdesenvolvimento brasileiro. Ignoram que aqui chegaram a partir de crises que
os tornaram excedentes, descartáveis, da mão de obra de suas pátrias, e que
aqui encontraram um imenso país já aberto, de fronteiras fixadas, regendo
autonomamente seu destino.” (RIBEIRO, 1995, p. 449). José Menk e Darcy Ribeiro
parecem concordar que Portugal estendeu seus domínios ultramarinos e tanto a
língua portuguesa quanto a implantação da fé católica contribuíram para a
consolidação de um governo estrangeiro em terras brasileiras.
José Menk conclui que: “a
tela de Victor Meirelles, (...) retrata aquela especial relação entre Igreja e
Estado. O que foi nela pintado não era apenas uma cerimônia religiosa, (...)
era, antes e acima de tudo, um ato jurídico institucional através do qual o
Estado português tomava posse e assumia a soberania das novas terras (...).” (MENK,
2011, p. 91). Essas novas terras já eram há muito habitadas, o que se deixa de
lado comumente nessa história é o fato de que índios e africanos também
participaram da formação desta nação, porém a pintura de Meirelles nos mostra
os índios como inferiores a espera de dominação, enquanto que na pintura de
Portinari nem ao menos há índios, mas sobre a ausência dos índios discorreremos
mais adiante.
“(...) O Portinari dialógico
é uma consequência do artesão consciencioso, do experimentador inquieto sempre
à procura da melhor solução, que coloca a história da arte à prova na medida em
que a atualiza e lhe confere um novo valor moral. (...)” (FABRIS, 1995, p. 31).
Neste trecho de um artigo de Mario de Andrade publicado em 1938, observamos que
o crítico objetiva mostrar uma particularidade nacional inserida num contexto
internacional, e Portinari é a ferramenta ideal para isso. Um jovem pintor em
ascendência, brasileiro que colocava em discussão assuntos já fechados da
história nacional, abrindo novos diálogos. Não é possível compreender a
história do Brasil a partir de um único ponto de vista ou documento, daí a
importância da análise comparativa e a utilização de diversas fontes. A
objetividade mostrada em tons frios na obra de Portinari contrariava o
romantismo da obra de Meirelles, mas essa contradição está além do estilo
artístico, está no pensamento do artista.
Darcy Ribeiro problematiza o
Brasil atual com referências diversas a respeito do problema social advindo da
má distribuição de renda, literalmente uma luta de classes planejada para
favorecer a elite dominante, ele escreve que: “O Brasil foi regido primeiro
como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios
nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo
sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um
proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. (...)” (RIBEIRO, 1995,
p. 447). Neste trecho percebemos como havia na formação original do Brasil os
índios e os africanos, e como os portugueses dominaram as terras inclusive
provocando uma miscigenação étnica onde o que prevaleceria obviamente seriam os
valores do “branco europeu”.
É de extrema importância a
posição de Darcy Ribeiro, pois neste livro o autor nos mostra a formação de um
Brasil alicerçado num trabalho conjunto da Igreja e do Estado. Faz comparações
com os outros países latino-americanos e com a África, discorrendo sobre
europeização, e finalmente comparando com uma romanização tardia, melhor. Ele
escreve que: “Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma
tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude
populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e
cultural.” (RIBEIRO, 1995, p. 452)
Importante ressaltar aqui o
papel da Igreja como instrumento de dominação junto ao Estado, comparando o
Brasil com uma “nova Roma”. Por mais que consideremos os aspectos positivos do
Brasil como a maior nação neolatina, não podemos esquecer o que o próprio Darcy
Ribeiro escreve sobre as condições em que se desenvolveu esta nação: “O que
houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida
por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de
seu próprio projeto de prosperidade, (...)” (RIBEIRO, 1995, p. 452)
No artigo de 1938, Mário de
Andrade dá ênfase ao trabalho muralista: “(...) Se a pintura de cavalete se
dirigia a “elites pequenas”, o mural, ao contrário, se destina “à inteligência
das coletividades, à compreensão do homem da rua”. (...)”. (FABRIS, 1995, p.
30). A ideia de pintar enormes murais em lugar de pequenos quadros proporcionou
a obra de Portinari um alcance diferenciado. Nos murais, sua arte poderia ser
apreciada por qualquer pessoa. Acreditamos que aqui sua obra tenha obtido maior
impacto e repercussão, se comparada a obra de Meirelles.
A “massa de trabalhadores
explorada, humilhada e ofendida” a que Darcy Ribeiro se refere obteve acesso a
arte de Portinari. As grandes obras eram geralmente encomendadas por indivíduos
da elite, inclusive a obra de Meirelles que era um pedido de Dom Pedro II. Em
contrapartida o mesmo tema abordado por Portinari estava destinado a apreciação,
ou melhor, a provocação do povo nas ruas.
Diálogo entre as obras
A partir de agora analisaremos
três aspectos essenciais nas obras que nos apresentarão com mais clareza os
pensamentos de Meirelles e Portinari. Apesar da grande diferença artística e
motivações ao criarem suas obras, esses elementos nos quais deteremos nossa
análise comparativa resumem de certa forma o que ainda temos de interesse em dialogar
neste trabalho. São eles: 1º como aparecem os índios nas obras; 2º como aparece
a cruz nas obras; e 3º como aparecem algumas pessoas que assistem a missa.
Primeiro, os índios aparecem
na obra de Meirelles tentando seguir a narrativa da carta de Caminha. O que
ocorre é que segundo relatos da carta, maravilhados, praticamente prostrando-se
ao poder da Igreja, os índios participam de dois dos três momentos em que
ocorrem celebrações religiosas. Meirelles utiliza elementos desses três
momentos para compor uma única obra. Segundo a carta, no domingo de Páscoa acontece
uma missa ainda sem a cruz. Entre segunda e quarta-feira buscou-se lenha para
confecção da cruz. Na quinta-feira há um momento com beijos de veneração a
cruz, e finalmente na sexta-feira, primeiro de maio a cruz é posicionada e
ocorre a missa final. No artigo escrito por Menk já é abordada essa questão, o
autor problematiza a respeito dos laços entre religião e política representados
na pintura de Meirelles, fazendo uso da interpretação da carta de Caminha.
Na obra de Portinari não há
índios. O que nos sugere pensar que o autor discorda de Meirelles e de Caminha,
pois há contradições entre a pintura e a carta. Segundo informações nos impressos,
periódicos, folhetos em geral e outros informativos que também podem ser
encontrados no Projeto Portinari, não há índios na pintura.
Durante esta pesquisa
encontramos um rascunho no site oficial do Projeto Portinari que serviu de
estudo para realização da obra. Ao observarmos detalhadamente, percebemos que no
rascunho original parecia haver índios. Há três homens segurando lanças,
flechas, arcos, e não estão prostrados, ao contrário, estão pulando de braços
erguidos. Definitivamente não fazem parte da cena, destoam tanto, até no
comportamento “livre” do grupo, sem a mesma reverência dos demais conforme a
imagem abaixo.
Porque o autor mudou de
ideia entre o estudo e a obra final? Podemos supor um amadurecimento no artista
tenha ocorrido e uma mudança em sua compreensão e intenção tenha culminado na
decisão de não colocar os índios na obra? O rascunho e a obra final datam do
mesmo ano, o que pode nos sugerir que Portinari mudou de ideia muito rápido, ou
nunca tenha pretendido colocar os índios na obra. Curiosamente notamos que os
poucos índios deste rascunho localizam-se próximos da bandeira com a cruz, logo
abaixo ou atrás da bandeira.
Boris Fausto escreveu que os
Jesuítas protegiam os índios da escravidão, daí um conflito entre as ordens
religiosas e os interesses da colônia. Porém essa proteção impunha outro tipo
de escravidão, a ideológica. Os índios eram catequizados e deviam aprender bons
modos cristãos, e com essa concepção missionária ocorria uma degradação da
identidade cultural indígena de forma gradativa.
Para Meirelles os índios
aceitaram de bom grado a chegada dos portugueses e até mesmo entenderam que
buscavam ouro conforme Caminha relata em sua carta, num trecho em que dois
índios são levados até o capitão na embarcação e são recebidos com grande
festa. Então um dos índios olha para o colar do capitão e acena para a terra,
como se quisesse dizer que havia ouro lá.
Podemos e devemos questionar
a veracidade do conteúdo da carta de Caminha e contestar a distância entre o
que ele viu e o que escreveu, inclusive sobre a participação dos índios em toda
sua narrativa. Se Meirelles imaginou a imagem final de sua pintura pelas razões
de sua época, Portinari também o fez. Resta-nos a crítica e a comparação de
outros documentos na busca de novas interpretações. Só podemos afirmar que a carta
de Caminha pode ser o documento histórico mais próximo sobre os eventos ocorridos
no entorno da primeira missa, por isso devemos questioná-lo enquanto ainda houver
perguntas.
Segundo, a cruz é um
elemento forte e decisivo na pintura de Meirelles, há uma devoção explícita na
obra. A cruz é o centro, tudo acontece a sua volta. Portinari ignora a cruz em
seu primeiro plano como elemento central da obra. Ele não tem compromisso com a
exaltação desse detalhe e parece ignorá-lo. Para ele há apenas fragmentos de sombras
da cruz espalhados pela pintura, características do seu estilo mais livre. O
artista mostra a base da cruz, e uma cruz vermelha representativa em uma
espécie de bandeira branca.
A ausência da cruz pode ser
justificada pelo fato da pintura ter sido feita num mural de 266 centímetros de
altura por 598 centímetros de largura, e não havia altura suficiente para pintá-la.
Porém, sabendo da ideologia do autor, podemos sugerir que a ausência da cruz é definitivamente
proposital. Pode representar que o “divino” não pode ser alcançado ou
representado numa primeira análise, ou deva ser ignorado e até mesmo não existir,
pois o que lhe interessa é pintar a essência humana, as relações sociais e a
desigualdade contida nessas relações.
A cruz é o símbolo da crença
portuguesa que se sobrepunha a crença indígena, e Darcy Ribeiro escreve sobre
duas visões opostas nesse sentido: “Os índios perceberam a chegada do europeu
como um acontecimento espantoso, só assimilável em sua visão mítica de mundo.”
E prossegue “Provavelmente seriam pessoas generosas, achavam os índios. Mesmo
porque, no seu mundo, mais belo era dar que receber. (...)” Darcy Ribeiro
escreve ainda que “muitos deles embarcaram confiantes nas primeiras naus,
crendo que seriam levados a Terra sem Males.” (RIBEIRO, 1995, p. 42) Depois do
pau-brasil o índio passou a ser a mercadoria principal de exportação e a
confiança que depositou nos portugueses levou-os a escravidão e extermínio.
Caminha relata em sua carta
ao rei de Portugal que não haviam encontrado ouro, prata, metal ou ferro, mas a
terra era boa e de bons ares. Porém Caminha ressalta ao rei que o melhor fruto
que poderiam tirar dessa terra, seria salvar os índios. Ou seja, os nativos
encontrados precisavam ser salvos pelo cristianismo católico. Sobre esse
salvacionismo, Darcy Ribeiro escreve que “Nas décadas do achamento, descoberta
ou invasão do Brasil, surgiram descrições cada vez mais minuciosas das novas
terras. Assim, elas iam sendo apropriadas pelo invasor também pelo conhecimento
de seus rios e matas (...).” (RIBEIRO, 1995, p. 56) A tomada das terras para a
Coroa Portuguesa foi sistemática e o uso do aparato religioso apenas contribuiu
para esse fim.
“Aqueles índios, tão diferentes
dos europeus, que os viam e os descreviam, mas também tão semelhantes, seriam
eles também membros do gênero humano, feitos do mesmo barro pelas mãos de Deus,
à sua imagem e semelhança? (...)” (RIBEIRO, 1995, p. 57) Discutiram os
teólogos. Pois apesar de muitas semelhanças físicas, também achavam crueldade nos
costumes dos índios canibais. Desconsiderando completamente sua própria
história, pois a Europa que avançou para o novo mundo havia chegado a um estado
caótico resultante de um processo histórico complexo que também havia
experimentado crueldades de homens contra seus semelhantes. O próprio Darcy
Ribeiro sugere que passando mais algum tempo, talvez os indígenas também
experimentassem esse processo natural, caso não tivessem sido bruscamente interrompidos
pela chegada dos portugueses.
Segundo Darcy Ribeiro,
“(...) o grupelho recém-chegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar
destrutivamente de múltiplas formas. (...)” (RIBEIRO, 1995, p. 30) Certamente
foi em parte pela força da religião que a imposição de ideologia e sobreposição
de cultura contribuíram para o sucesso dos portugueses no processo de dominação
dos indígenas. A cruz é o símbolo dessa contradição, onde poucos vencem, e
muitos morrem.
Em terceiro lugar, na
multidão que assiste a missa há diversos tipos nas duas pinturas. Na obra de
Portinari, a descrição comumente usada que é a posição oficial do Projeto
Portinari, afirma-se que no detalhe abaixo são oito velhos. Porém, ao
ampliarmos esta parte da imagem podemos ver que esses velhos mais se parecem
com “caveiras”.
Isso pode significar em
primeiro momento que são muito velhos, mas considerando as possíveis intenções
do autor, as caveiras podem ter sinônimo de morte. Podem representar a morte
vinda de fora, e disfarçada entre clérigos, guardas, e o restante da
tripulação, já que as doenças que dizimaram muitos índios vieram de Portugal.
Darcy Ribeiro escreve que além da guerra em disputa de territórios houve também
uma guerra bacteriológica “(...) travada pelas pestes que o branco trazia no
corpo e eram mortais para as populações indenes. (...)” além da escravização do
índio. (RIBEIRO, 1995, p. 30)
“Os navegantes, barbudos,
hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do
escoburto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza
encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada, esplendidos de vigor e de
beleza, tapando as ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos,
aqueles seres que saiam do mar.” (RIBEIRO, 1995, p. 44) Os portugueses
infectaram a população indígena levando-os a uma redução demográfica em pouco
tempo.
Boris Fausto escreve que
“catástrofe” é a palavra mais adequada para designar o que viria acontecer com
a população ameríndia. Essa catástrofe foi também demográfica, apenas entre
1562 e 1563 ocorreram duas ondas epidêmicas que dizimou pelo menos 60 mil
índios. Apenas em 1758 a Coroa Portuguesa determinou a libertação definitiva
dos indígenas, pois já no século XV os portugueses haviam começado o tráfico de
escravos africanos e a sorte de morrer pelas mãos portuguesas agora era também
destes.
No ano 2000 os jornais O
Globo, a Folha, entre outros, noticiaram inúmeros protestos e manifestações
alguns dias antes da comemoração dos 500 anos do Descobrimento, porém uma notícia
em particular precisa ser citada neste momento. No artigo de 12 de abril de
2000 encontrada no acervo do portal Terra, a comunidade indígena conhecida como
Pataxós considerou a comemoração inválida. E seguindo o pensando de Todorov, o
sentido de chamar um evento como este de “descobrimento”, diminui amplamente a
ideia da existência de uma cultura local anterior.
Os índios em questão
consideraram-se excluídos da cerimônia, e entenderam o evento como uma
celebração das autoridades. Protestaram contra a violência, a expropriação de
terras, e o extermínio dos índios ocorridos nesses 500 anos. A manifestação
principal ocorreu no local de comemoração onde há uma reserva indígena
conhecida como Pataxós, mas outras comunidades indígenas vindas de outras localidades
do Brasil também participaram, estimando-se um total de 2.000 índios. Passaram
antes pelo Monte Pascoal, local de realização da primeira missa e as tensões
logo aumentaram quando 200 policiais militares destruíram um monumento erguido
pelos índios no território de Coroa Vermelha, que objetivava fazer memória aos
povos extintos.
O monumento era um mapa da
América do Sul preenchido por objetos artesanais e simbólicos, erguido ao lado
da cruz de metal, onde antes estava a cruz de madeira original utilizada na
celebração da primeira missa. Percebemos aqui os três elementos discutidos nas
obras, atuantes na contemporaneidade. Os poucos índios restantes da população
original protestando, a cruz como símbolo de devoção e memória protegido por
lei, e a morte, que a cada dia chega aos índios como a animais em extinção
incapazes de sobreviver aos seus predadores.
Considerações
finais
Através da arte, no estudo
em questão, os autores expõem sua humanidade, ou seja, de certo modo devolvem
para o mundo de maneira pessoal suas experiências, segundo uma concepção
lukacsiana. Sendo assim, as considerações finais serão sobre os autores como
indivíduos, e não apenas sobre suas obras, como escreveu Gombrich.
A análise comparativa das
obras nos permite compreender o tempo presente, mas para isso evocamos o
passado. Os eventos ocorridos durante um longo processo histórico tão bem
detalhado por Darcy Ribeiro desencadearam a crise na Europa que obrigou os
portugueses se lançarem em busca de alternativas além mar. No século XVI os
portugueses encontram o Brasil e celebram a primeira missa conforme relato de
Caminha para o rei de Portugal. No século XIX em pleno movimento nacionalista
onde o Brasil fabricava sua imagem de nação, Meirelles realiza sua obra com
base na carta de Caminha, conforme o artigo de Menk. No século XX outro
movimento ganhava força, e o comunista Portinari realiza uma obra sobre a
primeira missa, mas com outra interpretação, seu pensamento pode ser bem
compreendido através das cartas de Andrade. No ano 2000 acontece a comemoração
dos 500 anos de descobrimento do Brasil e protestos indígenas inflamam por todo
país, conforme artigo mencionado.
Atualmente, em 2014 neste
estudo buscamos através de pesquisas, documentos e discussões bibliográficas,
elucidar um pouco mais sobre este tema ainda sombrio, repleto de enigmas e
conflitos ocultos, mas que o historiador precisa reconstruir utilizando a força
extraída de suas mais profundas inquietações. Se não deixamos de lado essa
paixão pelo compreender a história, de igual forma também não deixaremos de
lado os recursos técnicos disponíveis para a realização deste trabalho.
A Primeira Missa no Brasil
de fato representou mais que um ato religioso. Meirelles e Portinari deixam
isso muito claro em suas obras. A questão indígena que parece tão fantasiosa
para um, é para outro a extinção de povos e tomada de territórios em nome do
progresso. A cruz representada pelos dois artistas exalta a classe dominante,
mas também denuncia a força ideológica utilizada como alienação. E o impacto de
dois povos tão diferentes traria de uma forma ou de outra a submissão do mais
simples ao mais sofisticado.
Os dois artistas expressam
em suas pinturas o mesmo momento histórico, porém as pinturas diferem nos
elementos visuais e nas cenas apresentadas de acordo com o que é singular a
cada um dos dois. Suas expressões sobre a primeira missa no Brasil demonstram
particularidades importantíssimas se quisermos compreender as relações de poder
exercidas em nosso país em momentos diferentes. Menk parece estar certo quando
diz que a primeira missa legitima a aquisição de novas terras para o reino de
Portugal e Darcy Ribeiro também ao afirmar que hoje ainda há uma massa de
trabalhadores explorada e ofendida por uma minoria que está no poder.
As particularidades
expressas por Meirelles e Portinari se completam mesmo que os dois artistas
pertençam a séculos diferentes. As duas pinturas permitem-nos ver uma
celebração de poder, seja religioso ou político. O conflito entre as duas obras
é justamente o que os dois artistas tem de diferenças em seus valores
ideológicos, porém na essência expressam a celebração da classe dominante neste
evento, e esta é a principal particularidade contida nas duas obras. O que há
de mais diferente no objetivo dos dois artistas é que enquanto Meirelles
exalta, Portinari denuncia.
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