segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Expressão de particularidades históricas do Brasil nos séculos XIX e XX”

Trabalho de Conclusão do Curso de História em 2014 na FIG-UNIMESP


Professor Orientador: Henri de Carvalho
Aluno: Francisco Pedro da Silva


            Ao observarmos os eventos entorno da comemoração dos 500 anos do Brasil no ano 2000, percebemos o quanto esta temática ainda possui muito a se explorar. No estudo em questão, religião e estado são capazes de cometerem as maiores atrocidades em nome do progresso. Este tema também permeia a questão indígena, que completa os elementos expressos nas pinturas homônimas “Primeira Missa no Brasil” de Victor Meirelles e Cândido Portinari. Com formação em Teologia Livre e graduando em História, muito me interessa este assunto que tantos no círculo religioso evitam discutir. Essa análise comparativa nos permitirá compreender melhor a formação da sociedade brasileira, sua cultura e política, fazendo uso de conhecimentos fundamentados historicamente. Ao final deste trabalho pretendemos obter respostas para algumas inquietações que não são apenas pessoais, ainda que para isso devamos confrontar as contradições e anacronismos postos e impostos durante nossa formação.
Os objetos escolhidos são relevantes porque representam as duas faces de poder, religiosa e política, e como se tem interpretado essa relação desde 1500, partindo de representações feitas por artistas dos séculos XIX e XX. São duas representações muito diferentes, pois poderemos analisar como dois artistas com bases teóricas distintas puderam ter compreensões tão diferentes de um mesmo evento.
A importância desse tema na atualidade é grande, visto que a religião tem grande influência mesmo que o Brasil seja um Estado laico. Acompanhamos na mídia os acontecimentos ocorridos na bancada evangélica, que contradiz a laicidade proposta e fere a Comissão de Direitos Humanos. Também podemos questionar o uso de objetos religiosos em lugares públicos como Câmara de Deputados, Universidades, Escolas, Hospitais, entre outros. Há uma laicidade no Brasil ou nessa relação alguns grupos são favorecidos? Exemplo disso é a tal bancada Evangélica, que deveria ser uma bancada “religiosa”, observando o Estado laico brasileiro.
Muitos autores já pesquisaram sobre esta temática, dentre eles Darcy Ribeiro na sua obra “O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil”, José T. M. Menk no artigo “A primeira missa no Brasil: a origem das relações igreja estado no sistema jurídico institucional brasileiro até o século XIX”, e Boris Fausto em seu livro “História Concisa do Brasil”. Cada autor tem sua própria linha de pesquisa e contribui direta ou indiretamente para este trabalho com abordagens diferenciadas, devido a formação ideológica de cada um deles.
            É um assunto a se explorar, principalmente sob a ótica que pretendo abordar fazendo comparação entre os pensamentos que foram elaborados no século XIX e XX. Considerando que o autor do século XIX tem uma postura nacionalista, enquanto que o autor do século XX possui uma postura comunista, e ambos influenciados pelos valores e ideologias de seus respectivos períodos. Acredito que esse pequeno recorte poderá trazer novos diálogos para o assunto proposto.
Essa pesquisa pode contribuir em diversos aspectos, mas acredito que sua comparação com outros trabalhos, que a partir dos mesmos objetos de estudo, poderá oferecer novas possibilidades de análises comparativas dos documentos primários, secundários, e discussões bibliográficas.
Os objetos de pesquisa são importantes para minha área de estudo porque eles demonstram em sua particularidade pensamentos de épocas diferentes. E apenas entendendo como as pessoas pensavam através de suas obras, sejam elas pinturas, textos, esculturas, músicas, é que conseguiremos nos aproximar de determinados contextos históricos, correndo menos risco de cometer anacronismos, podendo assim compreender melhor fatos passados e presentes relacionados.
            Em caráter universal a importância deste trabalho é a discussão sobre as forças de domínio existentes no Brasil que podem ser percebidas através das obras de arte em estudo neste trabalho.
Os objetos de estudo neste trabalho são as pinturas homônimas “Primeira Missa no Brasil” de Victor Meirelles e Cândido Portinari. A problemática apresentada refere-se ao que significou a primeira missa no Brasil nos âmbitos político e religioso sob o ponto de vista de dois artistas com valores diferentes, separados por quase um século (88 anos). Para tanto, antes é necessário a apresentação dos respectivos contextos históricos de cada um deles e também das análises imanentes dos documentos primários como segue abaixo.

Historiografia, autores e obras
Nos anos de 1500 a Europa passava por uma crise geral. Boris Fausto explica que e a posição geográfica de Portugal lhe permitiu lançar-se além do Oceano Atlântico para inclusive ampliar seus domínios. Portugal possuía então essa tendência de voltar-se para fora que também advinha da experiência comercial e tecnológica acumulada ao longo dos séculos XIII e XIV.
No dia 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral e sua tripulação celebram a primeira missa em terras que mais tarde se chamariam de Brasil. A monarquia portuguesa trouxe consigo a religião católica que se mesclava com a política seguindo o modelo medieval europeu. Essa missa representou por muito tempo no imaginário coletivo o mito fundador. Ocorreu então a conquista de uma terra próspera habitada por uma população ameríndia bastante homogênea em termos culturais e linguísticos que se encontrava na costa brasileira, nativos que sequer se importavam com as riquezas naturais que os portugueses pretendiam tomar.
Pero Vaz de Caminha é o primeiro a relatar essa chegada em sua carta ao rei de Portugal. Caminha escreve que os índios admiraram-se dos portugueses, trocaram objetos e lhes indicaram onde havia ouro. Outra característica da carta é a presença do aparato religioso como ferramenta ideológica para salvar os índios. Porém houve um grande impacto durante este evento, até certo ponto muito semelhante ao ocorrido quando Colombo chega à América em 1492, como bem relata Todorov observando os diários de Colombo e outros documentos.
Segundo Darcy Ribeiro, esse impacto foi determinante no que seria o curso natural dos nativos. Portugal implantou diversas colônias de exploração e iniciou-se um processo de tomada dos bens naturais, inicialmente o pau-brasil, depois o ouro, depois cana de açúcar, depois café, conforme a necessidade dos compradores internacionais. A Ordem dos Jesuítas que chegou junto com Cabral tinha o objetivo de catequizar os índios, e paralelamente a isso os africanos eram utilizados como escravos.
No século XIX ocorreu a independência do Brasil resultante de um processo que incluiu inicialmente a mudança do reinado português para o Brasil em 1808. Essa mudança contribuiu para uma ruptura que lançou o Brasil a alguns períodos específicos. De 1500 até 1822 temos o Brasil colonial; de 1822 até 1889 temos o Brasil monárquico; de 1889 até 1930 temos a Primeira República; de 1930 até 1945 temos o Estado Getulista; de 1945 até 1964 temos a Experiência Democrática; e de 1964 até 1984 temos o Regime Militar e a transição para a Democracia definitivamente. Victor Meirelles realizou sua obra durante o período monárquico em 1860, já Portinari realizou a sua no período de experiência democrática em 1948. São dois períodos em que o Brasil sofria metamorfoses culturais e políticas em sua definição de Estado independente, e isso influenciou a vida e obra dos artistas como observaremos a partir de agora.
Durante o Brasil Monárquico, consolidou-se a Independência e a construção do Estado. Em 1824 os Estados Unidos reconheceram sua independência, em 1826 o Brasil também formalizou o reconhecimento de sua independência. Neste período ocorreu também a independência de outras colônias na América. Após a independência do Brasil, o governo brasileiro era dependente da Inglaterra, que objetivava colocar fim ao tráfico de escravos africanos, o que resultou em uma grande imigração de trabalhadores livres para o Brasil durante a modernização e expansão cafeeira.
Victor Meirelles de Lima, nascido em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis nasceu em 1832. Seu pai era um imigrante português chamado Antônio Meirelles de Lima e sua mãe era uma brasileira chamada Maria da Conceição. Victor Meirelles era pintor, desenhista e professor. Iniciou sua carreira realizando pinturas de paisagens da cidade. Frequentou a Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, e aos vinte anos foi premiado para viajar à Europa. Morou na Itália e na França de 1853 a 1861, dedicou-se ao estudo e trabalho. Depois se tornou professor honorário na Academia de Belas Artes lecionando pintura histórica e também foi professor do Liceu de Artes e Ofícios no Rio do Janeiro. Realizou quadros históricos, retratos, panoramas, mas dentre toda sua obra, uma das mais populares é a “Primeira Missa no Brasil”, que foi exposta em Paris em 1861. Meirelles utilizou como base para essa pintura, a carta de Caminha.
Seu estilo é eclético, mas pertence ao romantismo com traços do Barroco e Neoclassicismo. Devido ao período monárquico, Meirelles pintou este tema valorizando os elementos religiosos, pois era um dos pintores preferidos de Dom Pedro II que o introduziu ao mecenato, cuja proposta era renovar a imagem do Brasil através de símbolos visuais da história. Com a mudança da Monarquia para a República, Meirelles terminou sua carreira no esquecimento, pois estava muito vinculado ao Império. Faleceu em fevereiro de 1903 com 70 anos.
Análise da pintura “Primeira Missa no Brasil” (1860) de Victor Meirelles, óleo sobre tela:

No geral a pintura é mais clara no centro e escura nas laterais e em baixo. No canto superior esquerdo há apenas um fundo azul do céu contendo mais abaixo uns coqueiros e bem ao fundo em tons mais claros uma região mais elevada, talvez uma cadeia de montanhas. Ao pé do coqueiro que está mais próximo há pessoas que parecem acenar com uma das mãos, possivelmente chamando a multidão de índios que surge da floresta representada deste lado da pintura.
Ainda do lado esquerdo, mas abaixo da metade da altura na pintura podemos ver a multidão de índios mais próxima, destacados na frente há um casal, o homem usa um cocar e um colar, e a mulher usa um colar, e uma criança sendo empurrada pelo avanço da multidão. Esses índios se aproximam como numa marcha levantando uma poeira avermelhada que encobre suas pernas. Na frente, um homem de braços levantados, ele também usa cocar, colar, e penas na linha da cintura. Na parte inferior esquerda há apenas o chão com uns cactos rasteiros, uma espécie de capim, e algumas pedras.
            Aproximando-se do centro da pintura observamos algumas árvores ao fundo, cobrindo as montanhas distantes. A sombra em suas folhas sugere uma iluminação lateral, o que poderia indicar entre 9 ou 15 horas dependendo da localização. Na frente das árvores há uma cruz de madeira com aproximadamente 3 metros de altura e iluminada horizontalmente, semelhante ao ângulo de luz das árvores ao fundo. A cruz está em cima de um altar quadrado de cor salmão, em cima do altar há duas toalhas brancas sobrepostas, elas possuem detalhes rendados de cor dourada nas bordas, e abaixo do altar, dois degraus. Um grande livro aos pés da cruz, alguns arranjos de flores e folhas, duas velas finas e cumpridas e um crucifixo.
Podemos ver um sacerdote principal que de frente para a cruz, olha para ela de cabeça erguida e em pé, levantando em suas mãos um cálice dourado. Ele usa uma roupa longa e branca com detalhes dourados na capa ode há uma enorme cruz dourada estampada, e um capuz marrom pendurado atrás da cabeça e está de sandálias. Este homem é barbudo e com os cabelos apenas nas laterais e atrás da cabeça.
Atrás desse sacerdote há outro que segura a ponta de sua capa enquanto olha para baixo ajoelhado. Este usa um traje branco, mas com a touca pendurada nas costas e a parte debaixo num tom marrom escuro, também usa sandálias. Sua barba e cabelo são semelhantes ao que está a sua frente. Ao lado esquerdo desse segundo sacerdote, no primeiro degrau há uma bandeja com dois pequenos jarros transparentes, um deles contém um líquido vermelho. Abaixo deles há uma espécie de baú de madeira aberto, sua tampa é arredondada, dentro há alguns tecidos de cor dourada e vermelha. Atrás deste baú, como que escorando a tampa há outro baú menor, de metal. Encostado nos dois baús há uma espada em forma de cruz, e ao lado um tapete azul e vermelho com um jarro acobreado. Essa parte da cruz com os sacerdotes e os baús é a mais clara da pintura, o sol parecer bater quase a pino, é próximo do meio-dia, entre 10 e 14 horas.
            Ainda nesta parte central, à sombra do altar do lado esquerdo há alguns homens de cabeça baixa como que em reverência, um em pé, os outros ajoelhados. O que está de pé usa roupa vermelha e segura seu chapéu na mão. Esses homens estão na sombra da cruz e do altar. À direita deles há três homens de preto ajoelhados, da esquerda para a direita: o primeiro está segurando uma bandeira e usa uma armadura que é perceptível porque aparece seu braço reluzente; o segundo tem um corte de cabelo raspado em cima da cabeça e com cabelo apenas em volta; e o que está mais próximo do centro está prostrado.
Continuando a descrição da parte central, na direita de cima para baixo há o céu, montanhas ao fundo, árvores, a iluminação é lateral. No local atrás dos sacerdotes há uma multidão rezando, os do fundo estão na sombra, os da frente estão ajoelhados. Bem mais ao fundo é possível ver mais índios, mas olhando para o lado direito da imagem. Entre esses da frente destacamos da esquerda para direita alguns homens de preto, outros de branco com detalhes dourados, um com a capa vermelha, e atrás deste, um homem com roupas escuras, marrom e azul, com capuz, há uma espada pendurada em sua cintura. Há também dois homens de armadura, estes estão em pé, e um deles segura uma lança.
            Na parte de baixo no centro da imagem há algumas folhas grandes de uma planta rasteira, a direita um índio quase de costas com os cabelos longos e grisalhos e apontando com a mão esquerda para o outro lado, onde estão os homens de armadura. Esse índio grisalho parece estar completamente nu, porém as folhas encobrem suas partes baixas. Em seus braços há como que pinturas na pele. Com a mão direita ele abraça uma índia que parece usar apenas uma pulseira e algumas penas cobrindo a região íntima. Ela está com a mão direita no queixo e mesmo estando quase de costas, sua expressão corporal é de surpresa, admiração. Seus cabelos são negros e estão trançados até abaixo da cintura e seu seio direito aparece sutilmente no movimento que faz ao levantar o braço. Acima do seu calcanhar há uma pintura na pele, são três riscos que dão a volta na perna.
Seguindo para a direita vemos alguns índios numa área mais escura, talvez a sombra de uma árvore, são homens e mulheres, uma delas segura uma criança pelos braços nas costas. Um dos índios usa um pequeno cocar e parece ter algo abaixo da boca, talvez um objeto pontiagudo atravessado na pele. Ao que parece todos estes possuem algum tipo de pintura na pele. Olham para todos os lados parecendo admirados e confusos. Saltando da sombra é possível ver a perna esquerda de uma índia que está sentada, quase deitada no chão. É uma perna bem torneada e o restante do seu corpo está na sombra. Seu seio esquerdo está a mostra e parece haver uma criança mamando nele.
            No canto superior direito da imagem há uma grande árvore, suas folhas se estendem até quase o centro da pintura. Além da folhagem natural, parece haver nos galhos outras folhas diferentes, possivelmente trepadeiras. Ainda nos galhos podemos observar dois índios. Um deles está de costas para a cena central e parece tentar equilibrar-se. O outro mais próximo do centro está olhando para o evento principal no centro da pintura. Ele tem longos cabelos pretos e usa apenas uma vestimenta de penas ou folhas verdes, amarelas e vermelhas na linha da cintura. Abaixo desse índio podemos ver bem ao fundo a praia e os navios.
No canto inferior direito há mais alguns índios ao pé da árvore. Em destaque um casal com uma criança, o casal parece conversar, estão vestidos com penas vermelhas e verdes nas partes baixas. A mulher usa alguma coisa pendurada na orelha e o homem usa um cocar de penas vermelhas, laranjas e azuis. Sua cabeça está voltada para trás enquanto fala com a mulher, mas seu braço esquerdo parece apontar para a cruz. Seu braço direito segura um pedaço de madeira em cima do ombro, talvez uma arma. A criança, logo abaixo deles, olha para trás com expressão de medo e abraça a mulher. Os três possuem alguns desenhos pelo corpo, sendo que o homem possui desenhos inclusive no rosto.
Menos destacado podemos ver o índio guerreiro. Ele está de costas para o evento em destaque na pintura, seu rosto e a parte de cima do peito, seu ombro, e parte do braço direito estão obscurecidos por uma sombra mais forte. Ainda assim é possível perceber um grande cocar, talvez o maior dentre todos os índios da imagem. Ele usa penas de várias cores penduradas na linha da cintura e segura uma lança, objeto que parece tentar esconder. Em seu braço direito e no rosto parece haver algumas pinturas. Abaixo dele apenas um chão de pedra com algumas pedrinhas, conchas e atrás uma folhagem rasteira.
Esses índios não aparecem na obra final de Portinari e há inúmeros motivos externos e internos que podem ter influenciado o artista neste ponto. No século XX ocorreu a experiência democrática no Brasil. Getúlio Vargas acabara de cair e foi acordado pelo Supremo Tribunal Federal a eleição em que o povo escolheria seu próximo presidente em 1945. Às vésperas das eleições, Getúlio declarou apoio à candidatura de Dutra, ressalvando que se o presidente eleito não cumprisse os compromissos, Getúlio ficaria do lado do povo. A população votou tão massivamente que se mostrou a forçado povo. Durante o governo Dutra começou a repressão ao Partido Comunista. Em 1947, a partir de denúncias de dois deputados, o Supremo Tribunal Federal decidiu a cassação do registro do Partido Comunista, que se tornou clandestino em 1948, ano em que Portinari realizou sua obra em análise.
Candido Portinari nasceu em 30 de dezembro de 1903 numa fazenda de café próxima a Brodowski em São Paulo. Seus pais eram imigrantes italianos pobres, e Portinari recebeu apenas a educação primária, apesar de já demonstrar habilidades artísticas aos 9 anos. Aos 15 anos partiu para o Rio de Janeiro para estudar na Escola Nacional de Belas Artes e em 1928 ganhou um prêmio de viagem a Europa. Ao voltar para o Brasil em 1931, estava decidido a pintar sobre a história, o povo, a cultura, a alma brasileira. Com as cores fortes mostrava a pobreza, as dificuldades e a dor, e essa mistura superava seu academicismo dando origem a uma experimentação moderna.
Era companheiro de poetas, escritores, jornalistas e diplomatas, participando da elite intelectual brasileira neste período em que grandes mudanças ocorriam. Este seleto grupo refletia sobre problemas do mundo e como isso afetava a realidade nacional, então Portinari tornou-se um militante político filiado ao Partido Comunista. Porém não conseguiu se eleger nem como deputado federal, nem como senador por uma pequena diferença de votos e exilou-se no Uruguai por algum tempo devido a repressão política, há suspeita de fraudes nas eleições por conta das perseguições ao seu partido. Já como artista, alcançou reconhecimento nacional e depois internacional, ganhando vários prêmios. Faleceu em fevereiro de 1962 de intoxicação pelas tintas, segundo alguns historiadores, sofria de claustrofobia e desmaiava com frequência nos locais de trabalho.

Análise da pintura “Primeira Missa no Brasil” (1948) de Cândido Portinari, têmpera sobre tela:

Esta pintura apresenta muitos elementos de forma retangular ou quadrada, no geral há muitas linhas retas e parece haver uma sobreposição de recortes, fazendo parecer uma montagem feita com colagens, o que dificulta a leitura. Num primeiro olhar parece que alguns quadros são mais iluminados que outros. Mesmo com as cores claras da pintura, tende-se um clima mais sério, frio, mecânico, petrificado. A imagem está organizada numa distribuição de grupos de pessoas, a maior parte delas rezando. Há uma cena principal no centro, parece haver quatro colunas que sustentam alguma estrutura, e no fundo mar e montanhas.
Da esquerda para a direita podemos ver a primeira coluna de cor marrom escura e a sua frente um soldado quase de costas, levemente direcionado para o centro da imagem segurando uma lança com a mão esquerda. Esta mão não aparece porque está atrás do soldado, considerando que sua frente não está visível. Ele usa capacete arredondado brilhante e está em pé e firme, olhando atentamente para a cena que ocorre no centro da pintura. O cabelo na nuca está a mostra e há uma barba, que pode também ser uma extensão do capacete em volta do rosto. Há uma parte de metal na região do peito, nos ombros outro tipo de material vermelho escuro com detalhes, uma malha lilás no restante do braço e uma luva cinza grossa por cima. Sua calça é cinza escuro e usa uma espécie de bota.
Seguindo para a direita há alguém ajoelhado, é um homem barbudo vestindo uma roupa lilás e um manto branco, há algo amarelo dourado em sua cabeça. Ele parece segurar um lenço nas mãos  atrás dele está a segunda coluna já mencionada. Entre este homem e o descrito anteriormente há um detalhe com outro desenho sobreposto, parecem duas mãos com uma roupa azul até próximo dos dedos. Ao lado desta segunda coluna há no fundo um grupo de pessoas ajoelhadas vestindo roupa branca. Atrás delas há o que parece ser o mar, uma montanha do outro lado, e acima o céu.
Quase no centro a figura há outro grupo de homens ajoelhados, usam vestes marrons e uma corda amarrada na altura da cintura. Eles estão de costas para quem vê a imagem, mas de frente para a cena principal que logo descreverei. Neste grupo há oito homens, quatro atrás dos outros quatro. Os que estão atrás deixam visíveis os pés, os dois primeiros estão com os pés mais juntos enquanto que os outros dois estão com os pés mais separados. Ao lado deles há um baú aberto com um grande tecido verde colocado em parte para fora do baú.
No centro da imagem ocorre o evento principal. Há um altar quadrado com uma sombra em formato de cruz, em cima dele há um arranjo de folhas, um livro, um sacerdote erguendo um cálice e usando um vestido com detalhes nas partes baixas, uma cruz vermelha nas costas, e uma fita grossa envolta ao braço esquerdo. Atrás dele há outro sacerdote ajoelhado e rezando. Este altar central está em cima de uma base quadrada que dá impressão de ter um degrau em volta dele, destacando a cena. Atrás do altar está a terceira coluna marrom já mencionada, e a continuação do mar, montanhas e céu.
No lado direito da imagem observamos vários agrupamentos de pessoas ajoelhadas. No fundo ao centro um grupo além de ajoelhado segura lanças com as pontas apontando para cima. Ainda no fundo há outro grupo e entre eles há uma bandeira branca com uma cruz vermelha sob um mastro azul escuro. No canto há a quarta coluna onde outro grupo quase imperceptível tem um de seus componentes segurando uma lança com a ponta para cima.
A frente deste último grupo há o que se parece um grupo de pessoas usando vestes transparentes, cada um de uma cor, mas eles são brancos, e as cabeças parecem caveiras olhando para cima. Mais a frente o grupo mais próximo de quem vê a pintura, são homens venerando a cena principal, alguns de chapéu, outros de cabelo comprido, e o mais próximo de cabelo curto segurando um lenço, esfregando-o no rosto. Atrás dele um homem parece admirado, a atrás deste outro, um com olhar desesperador.
Percebemos como é diferente a primeira missa aos olhos de Meirelles e de Portinari, e isso é notório na forma com que cada um deles expressou esse momento histórico, a maneira como materializam suas emoções e ideologias. Em cada mínimo detalhe artístico é transmitido da individualidade dos autores na forma de uma particularidade que nos afirma a riqueza da obra de arte em si. Nos personagens e objetos representados podemos perceber elementos que nos ajudarão a compreender as obras. E mais que isso, compreender as relações de poder decorrente desses dois momentos específicos nas duas interpretações da “Primeira Missa no Brasil”.
Faremos um diálogo bibliográfico a fim de melhor compreendermos a expressão das particularidades históricas do Brasil nos séculos XIX e XX representadas nas obras homônimas “Primeira Missa no Brasil” de Meirelles e Portinari. O diálogo se dará da seguinte forma: primeiramente discorreremos algumas questões de estética; em segundo lugar abordaremos os contextos históricos dos principais momentos; em terceiro lugar compararemos alguns elementos nas duas imagens problematizando algumas questões com eventos mais atuais.

            A importância da estética na interpretação histórica
George Lukács escreve que “(...) A particularidade é sob tal forma fixada que não mais pode ser superada: sob ela se funda o mundo formal das obras de arte. O processo pelo qual as categorias se resolvem e se transformam uma na outra sofre alteração: tanto a singularidade quanto a universalidade aparecem sempre superadas na particularidade.” (LUKÁCS, 1978, p. 161)
Neste trecho Lukács explica que a particularidade é a superação da singularidade e da universalidade. O que há de particular em uma obra de arte é a superação da singularidade do autor em experiência com a universalidade do mundo. Logo, o que vemos numa obra é resultado da vida do autor em determinado contexto histórico, neste caso, sua relação com o evento denominado “Primeira Missa no Brasil”.
Gombrich escreve que “Uma coisa que realmente não existe é aquilo a que se dá o nome de Arte. Existem somente artistas. Outrora, eram homens que apanhavam terra colorida e modelavam toscamente as formas de um bisão na parede de uma caverna; hoje, alguns compram suas tintas e desenham cartazes para os tapumes; (...) Não prejudica ninguém chamar a  todas essas atividades arte, desde que conservemos em mente que tal palavra pode significar coisas muito diferentes, em tempos e lugares diferentes, (...)” (GOMBRICH, 2000, p. 15)
O autor afirma que a arte não existe, mas sim os artistas. Discorre sobre o caminho percorrido pelas representações artísticas desde as pinturas nas cavernas até as mais sofisticadas que se diferenciam entre si, mas que em suma nada mais são que a técnica disponível em cada momento histórico, segundo seus padrões de beleza. Sendo assim podemos supor que apesar dos objetos de estudo desta pesquisa serem duas pinturas, o que está em análise aqui são na verdade seus autores.
Gombrich escreve também que: “O problema com a beleza é que gostos e padrões do que é belo variam imensamente.” (GOMBRICH, 2000, p. 20). As duas pinturas, tanto a de Meirelles como a de Portinari são muito diferentes. Para alguns a primeira é mais bela, para outros é a segunda. Porém o que temos por padrão de beleza é muito variável dependendo de cada contexto, do que cada sociedade ou classe social consegue ler.
Gombrich escreve ainda que “O que ocorre com a beleza ocorre também com a expressão. (...) a expressão de uma figura na pintura que nos leva a gostar da obra ou detestá-la.” (GOMBRICH, 2000, p. 23). Considerando o que as das duas obras significaram cada uma para seu tempo, devemos interpretar o que nos expressam hoje. Gostar ou detestar da obra depende do referencial que temos por beleza. A pintura de Meirelles é mais realista enquanto que a de Portinari é “quadrada”. Isso naturalmente levaria muitos a simpatizarem com a pintura de Meirelles por se parecer mais com a realidade, enquanto que, para compreender Portinari se faz necessário um repertório maior de conhecimento artístico. As formas e cores de Portinari remetem a obscuridade e dureza, e talvez seja essa a emoção que o autor quis provocar.
Analisemos mais um trecho de Gombrich onde ele escreve que “Existem duas coisas, portanto, que nos devemos perguntar sempre se acharmos falhas na exatidão de um quadro. Uma é se o artista não teria suas razões para mudar a aparência daquilo que viu.” E continua “(...) A outra é que nunca deveríamos condenar uma obra por estar incorretamente desenhada, a menos que tenhamos a profunda convicção de  estarmos  certos  e  o  pintor  errado.” (GOMBRICH, 2000, p. 27)
Partindo dessa afirmação de Gombrich podemos supor que nosso entendimento sobre determinada obra de arte deve partir do que o artista quis expressar, e compreender que o artista é a grande questão. Meirelles pintou sua obra em 1860 e Portinari pintou sua obra em 1948, 88 anos depois, temos aqui dois homens com valores diferentes e em contextos históricos diferentes que só podem ser compreendidos se nos aprofundarmos na época em que cada um deles viveu. Considerando que Gombrich e Lukács possuem diferentes linhas teóricas, ainda assim podemos afirmar que as obras de artes tem muito a nos dizer por serem documentos históricos que merecem nossa análise utilizando todos os recursos possíveis a fim de levantar hipóteses. As duas obras são diferentes, isso já percebemos, mas porque cada um dos artistas fez como fez? Um deles está certo e o outro errado? Talvez cada um esteja certo dentro de seu próprio contexto histórico e ideologia.

Diálogo com a historiografia
Em seu artigo, o advogado Menk preocupa-se em narrar os eventos que ilustram o relacionamento da Igreja Católica com o Estado luso-brasileiro, partindo de uma análise da pintura “Primeira Missa no Brasil” de Victor Meirelles. Menk faz uso da carta de Pero Vaz de Caminha, fonte descritiva para a pintura de Meirelles. Para Menk, a primeira missa representou muito mais que um ato religioso, e sim uma cerimônia que legitimava a aquisição das novas terras para o reino de Portugal. O autor discorre sobre as consequências decorrentes da Independência e faz reflexão a respeito da posição jurídica da Igreja no Brasil. Utiliza-se de artigos da constituição para embasar suas indagações e escreve que a obra: “(...) é um verdadeiro ícone formador do nosso imaginário coletivo. (...) ela procura retratar, dentro de uma visão romântica, imaginada pelo autor, um dos momentos fundamentais da história do país.” (MENK, 2011, p. 67)
“(...) Portinari não é, no entanto, desprovido de originalidade. Seu diálogo com as obras de outros artistas, (...), não tem nada de servil ou plagiário: Portinari, “quando emprega esses elementos, não apenas os torna próprios dele como os torna próprios do quadro (...)”.” (FABRIS, 1995, p. 18-9). Portinari também pintava temas já abordados por outros artistas, mesmo assim o crítico Andrade exalta sua originalidade explicitando o caráter singular de suas obras. Diferente de Meirelles, Portinari ignora as informações da carta de Caminha e realiza uma obra sobre o mesmo tema, porém livre de qualquer influência, ao contrário, diferente propositadamente.
Menk escreve também que “(...) os monarcas de Portugal passaram a exercer, ao mesmo tempo, o poder de ordem civil e eclesiástica em seus territórios. Poder este estendido a todas as conquistas e domínios ultramarinos, onde a implantação da fé católica acabou por se confundir com a consolidação do poder temporal de Portugal.” (MENK, 2011, p. 44). Podemos observar que este autor consegue fazer uma estreita ligação entre religião e estado.
Darcy escreve que: “Afirmam até que a religião católica e a língua portuguesa contribuíram para o subdesenvolvimento brasileiro. Ignoram que aqui chegaram a partir de crises que os tornaram excedentes, descartáveis, da mão de obra de suas pátrias, e que aqui encontraram um imenso país já aberto, de fronteiras fixadas, regendo autonomamente seu destino.” (RIBEIRO, 1995, p. 449). José Menk e Darcy Ribeiro parecem concordar que Portugal estendeu seus domínios ultramarinos e tanto a língua portuguesa quanto a implantação da fé católica contribuíram para a consolidação de um governo estrangeiro em terras brasileiras.
José Menk conclui que: “a tela de Victor Meirelles, (...) retrata aquela especial relação entre Igreja e Estado. O que foi nela pintado não era apenas uma cerimônia religiosa, (...) era, antes e acima de tudo, um ato jurídico institucional através do qual o Estado português tomava posse e assumia a soberania das novas terras (...).” (MENK, 2011, p. 91). Essas novas terras já eram há muito habitadas, o que se deixa de lado comumente nessa história é o fato de que índios e africanos também participaram da formação desta nação, porém a pintura de Meirelles nos mostra os índios como inferiores a espera de dominação, enquanto que na pintura de Portinari nem ao menos há índios, mas sobre a ausência dos índios discorreremos mais adiante.
“(...) O Portinari dialógico é uma consequência do artesão consciencioso, do experimentador inquieto sempre à procura da melhor solução, que coloca a história da arte à prova na medida em que a atualiza e lhe confere um novo valor moral. (...)” (FABRIS, 1995, p. 31). Neste trecho de um artigo de Mario de Andrade publicado em 1938, observamos que o crítico objetiva mostrar uma particularidade nacional inserida num contexto internacional, e Portinari é a ferramenta ideal para isso. Um jovem pintor em ascendência, brasileiro que colocava em discussão assuntos já fechados da história nacional, abrindo novos diálogos. Não é possível compreender a história do Brasil a partir de um único ponto de vista ou documento, daí a importância da análise comparativa e a utilização de diversas fontes. A objetividade mostrada em tons frios na obra de Portinari contrariava o romantismo da obra de Meirelles, mas essa contradição está além do estilo artístico, está no pensamento do artista.
Darcy Ribeiro problematiza o Brasil atual com referências diversas a respeito do problema social advindo da má distribuição de renda, literalmente uma luta de classes planejada para favorecer a elite dominante, ele escreve que: “O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. (...)” (RIBEIRO, 1995, p. 447). Neste trecho percebemos como havia na formação original do Brasil os índios e os africanos, e como os portugueses dominaram as terras inclusive provocando uma miscigenação étnica onde o que prevaleceria obviamente seriam os valores do “branco europeu”.
É de extrema importância a posição de Darcy Ribeiro, pois neste livro o autor nos mostra a formação de um Brasil alicerçado num trabalho conjunto da Igreja e do Estado. Faz comparações com os outros países latino-americanos e com a África, discorrendo sobre europeização, e finalmente comparando com uma romanização tardia, melhor. Ele escreve que: “Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural.” (RIBEIRO, 1995, p. 452)
Importante ressaltar aqui o papel da Igreja como instrumento de dominação junto ao Estado, comparando o Brasil com uma “nova Roma”. Por mais que consideremos os aspectos positivos do Brasil como a maior nação neolatina, não podemos esquecer o que o próprio Darcy Ribeiro escreve sobre as condições em que se desenvolveu esta nação: “O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, (...)” (RIBEIRO, 1995, p. 452)
No artigo de 1938, Mário de Andrade dá ênfase ao trabalho muralista: “(...) Se a pintura de cavalete se dirigia a “elites pequenas”, o mural, ao contrário, se destina “à inteligência das coletividades, à compreensão do homem da rua”. (...)”. (FABRIS, 1995, p. 30). A ideia de pintar enormes murais em lugar de pequenos quadros proporcionou a obra de Portinari um alcance diferenciado. Nos murais, sua arte poderia ser apreciada por qualquer pessoa. Acreditamos que aqui sua obra tenha obtido maior impacto e repercussão, se comparada a obra de Meirelles.
A “massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida” a que Darcy Ribeiro se refere obteve acesso a arte de Portinari. As grandes obras eram geralmente encomendadas por indivíduos da elite, inclusive a obra de Meirelles que era um pedido de Dom Pedro II. Em contrapartida o mesmo tema abordado por Portinari estava destinado a apreciação, ou melhor, a provocação do povo nas ruas.

            Diálogo entre as obras
A partir de agora analisaremos três aspectos essenciais nas obras que nos apresentarão com mais clareza os pensamentos de Meirelles e Portinari. Apesar da grande diferença artística e motivações ao criarem suas obras, esses elementos nos quais deteremos nossa análise comparativa resumem de certa forma o que ainda temos de interesse em dialogar neste trabalho. São eles: 1º como aparecem os índios nas obras; 2º como aparece a cruz nas obras; e 3º como aparecem algumas pessoas que assistem a missa.
Primeiro, os índios aparecem na obra de Meirelles tentando seguir a narrativa da carta de Caminha. O que ocorre é que segundo relatos da carta, maravilhados, praticamente prostrando-se ao poder da Igreja, os índios participam de dois dos três momentos em que ocorrem celebrações religiosas. Meirelles utiliza elementos desses três momentos para compor uma única obra. Segundo a carta, no domingo de Páscoa acontece uma missa ainda sem a cruz. Entre segunda e quarta-feira buscou-se lenha para confecção da cruz. Na quinta-feira há um momento com beijos de veneração a cruz, e finalmente na sexta-feira, primeiro de maio a cruz é posicionada e ocorre a missa final. No artigo escrito por Menk já é abordada essa questão, o autor problematiza a respeito dos laços entre religião e política representados na pintura de Meirelles, fazendo uso da interpretação da carta de Caminha.
Na obra de Portinari não há índios. O que nos sugere pensar que o autor discorda de Meirelles e de Caminha, pois há contradições entre a pintura e a carta. Segundo informações nos impressos, periódicos, folhetos em geral e outros informativos que também podem ser encontrados no Projeto Portinari, não há índios na pintura.
Durante esta pesquisa encontramos um rascunho no site oficial do Projeto Portinari que serviu de estudo para realização da obra. Ao observarmos detalhadamente, percebemos que no rascunho original parecia haver índios. Há três homens segurando lanças, flechas, arcos, e não estão prostrados, ao contrário, estão pulando de braços erguidos. Definitivamente não fazem parte da cena, destoam tanto, até no comportamento “livre” do grupo, sem a mesma reverência dos demais conforme a imagem abaixo.


Porque o autor mudou de ideia entre o estudo e a obra final? Podemos supor um amadurecimento no artista tenha ocorrido e uma mudança em sua compreensão e intenção tenha culminado na decisão de não colocar os índios na obra? O rascunho e a obra final datam do mesmo ano, o que pode nos sugerir que Portinari mudou de ideia muito rápido, ou nunca tenha pretendido colocar os índios na obra. Curiosamente notamos que os poucos índios deste rascunho localizam-se próximos da bandeira com a cruz, logo abaixo ou atrás da bandeira.
Boris Fausto escreveu que os Jesuítas protegiam os índios da escravidão, daí um conflito entre as ordens religiosas e os interesses da colônia. Porém essa proteção impunha outro tipo de escravidão, a ideológica. Os índios eram catequizados e deviam aprender bons modos cristãos, e com essa concepção missionária ocorria uma degradação da identidade cultural indígena de forma gradativa.
Para Meirelles os índios aceitaram de bom grado a chegada dos portugueses e até mesmo entenderam que buscavam ouro conforme Caminha relata em sua carta, num trecho em que dois índios são levados até o capitão na embarcação e são recebidos com grande festa. Então um dos índios olha para o colar do capitão e acena para a terra, como se quisesse dizer que havia ouro lá.
Podemos e devemos questionar a veracidade do conteúdo da carta de Caminha e contestar a distância entre o que ele viu e o que escreveu, inclusive sobre a participação dos índios em toda sua narrativa. Se Meirelles imaginou a imagem final de sua pintura pelas razões de sua época, Portinari também o fez. Resta-nos a crítica e a comparação de outros documentos na busca de novas interpretações. Só podemos afirmar que a carta de Caminha pode ser o documento histórico mais próximo sobre os eventos ocorridos no entorno da primeira missa, por isso devemos questioná-lo enquanto ainda houver perguntas.
Segundo, a cruz é um elemento forte e decisivo na pintura de Meirelles, há uma devoção explícita na obra. A cruz é o centro, tudo acontece a sua volta. Portinari ignora a cruz em seu primeiro plano como elemento central da obra. Ele não tem compromisso com a exaltação desse detalhe e parece ignorá-lo. Para ele há apenas fragmentos de sombras da cruz espalhados pela pintura, características do seu estilo mais livre. O artista mostra a base da cruz, e uma cruz vermelha representativa em uma espécie de bandeira branca.
A ausência da cruz pode ser justificada pelo fato da pintura ter sido feita num mural de 266 centímetros de altura por 598 centímetros de largura, e não havia altura suficiente para pintá-la. Porém, sabendo da ideologia do autor, podemos sugerir que a ausência da cruz é definitivamente proposital. Pode representar que o “divino” não pode ser alcançado ou representado numa primeira análise, ou deva ser ignorado e até mesmo não existir, pois o que lhe interessa é pintar a essência humana, as relações sociais e a desigualdade contida nessas relações.
A cruz é o símbolo da crença portuguesa que se sobrepunha a crença indígena, e Darcy Ribeiro escreve sobre duas visões opostas nesse sentido: “Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimento espantoso, só assimilável em sua visão mítica de mundo.” E prossegue “Provavelmente seriam pessoas generosas, achavam os índios. Mesmo porque, no seu mundo, mais belo era dar que receber. (...)” Darcy Ribeiro escreve ainda que “muitos deles embarcaram confiantes nas primeiras naus, crendo que seriam levados a Terra sem Males.” (RIBEIRO, 1995, p. 42) Depois do pau-brasil o índio passou a ser a mercadoria principal de exportação e a confiança que depositou nos portugueses levou-os a escravidão e extermínio.
Caminha relata em sua carta ao rei de Portugal que não haviam encontrado ouro, prata, metal ou ferro, mas a terra era boa e de bons ares. Porém Caminha ressalta ao rei que o melhor fruto que poderiam tirar dessa terra, seria salvar os índios. Ou seja, os nativos encontrados precisavam ser salvos pelo cristianismo católico. Sobre esse salvacionismo, Darcy Ribeiro escreve que “Nas décadas do achamento, descoberta ou invasão do Brasil, surgiram descrições cada vez mais minuciosas das novas terras. Assim, elas iam sendo apropriadas pelo invasor também pelo conhecimento de seus rios e matas (...).” (RIBEIRO, 1995, p. 56) A tomada das terras para a Coroa Portuguesa foi sistemática e o uso do aparato religioso apenas contribuiu para esse fim.
“Aqueles índios, tão diferentes dos europeus, que os viam e os descreviam, mas também tão semelhantes, seriam eles também membros do gênero humano, feitos do mesmo barro pelas mãos de Deus, à sua imagem e semelhança? (...)” (RIBEIRO, 1995, p. 57) Discutiram os teólogos. Pois apesar de muitas semelhanças físicas, também achavam crueldade nos costumes dos índios canibais. Desconsiderando completamente sua própria história, pois a Europa que avançou para o novo mundo havia chegado a um estado caótico resultante de um processo histórico complexo que também havia experimentado crueldades de homens contra seus semelhantes. O próprio Darcy Ribeiro sugere que passando mais algum tempo, talvez os indígenas também experimentassem esse processo natural, caso não tivessem sido bruscamente interrompidos pela chegada dos portugueses.
Segundo Darcy Ribeiro, “(...) o grupelho recém-chegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas. (...)” (RIBEIRO, 1995, p. 30) Certamente foi em parte pela força da religião que a imposição de ideologia e sobreposição de cultura contribuíram para o sucesso dos portugueses no processo de dominação dos indígenas. A cruz é o símbolo dessa contradição, onde poucos vencem, e muitos morrem.
Em terceiro lugar, na multidão que assiste a missa há diversos tipos nas duas pinturas. Na obra de Portinari, a descrição comumente usada que é a posição oficial do Projeto Portinari, afirma-se que no detalhe abaixo são oito velhos. Porém, ao ampliarmos esta parte da imagem podemos ver que esses velhos mais se parecem com “caveiras”.

Isso pode significar em primeiro momento que são muito velhos, mas considerando as possíveis intenções do autor, as caveiras podem ter sinônimo de morte. Podem representar a morte vinda de fora, e disfarçada entre clérigos, guardas, e o restante da tripulação, já que as doenças que dizimaram muitos índios vieram de Portugal. Darcy Ribeiro escreve que além da guerra em disputa de territórios houve também uma guerra bacteriológica “(...) travada pelas pestes que o branco trazia no corpo e eram mortais para as populações indenes. (...)” além da escravização do índio. (RIBEIRO, 1995, p. 30)
“Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do escoburto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada, esplendidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saiam do mar.” (RIBEIRO, 1995, p. 44) Os portugueses infectaram a população indígena levando-os a uma redução demográfica em pouco tempo.
Boris Fausto escreve que “catástrofe” é a palavra mais adequada para designar o que viria acontecer com a população ameríndia. Essa catástrofe foi também demográfica, apenas entre 1562 e 1563 ocorreram duas ondas epidêmicas que dizimou pelo menos 60 mil índios. Apenas em 1758 a Coroa Portuguesa determinou a libertação definitiva dos indígenas, pois já no século XV os portugueses haviam começado o tráfico de escravos africanos e a sorte de morrer pelas mãos portuguesas agora era também destes.
No ano 2000 os jornais O Globo, a Folha, entre outros, noticiaram inúmeros protestos e manifestações alguns dias antes da comemoração dos 500 anos do Descobrimento, porém uma notícia em particular precisa ser citada neste momento. No artigo de 12 de abril de 2000 encontrada no acervo do portal Terra, a comunidade indígena conhecida como Pataxós considerou a comemoração inválida. E seguindo o pensando de Todorov, o sentido de chamar um evento como este de “descobrimento”, diminui amplamente a ideia da existência de uma cultura local anterior.
Os índios em questão consideraram-se excluídos da cerimônia, e entenderam o evento como uma celebração das autoridades. Protestaram contra a violência, a expropriação de terras, e o extermínio dos índios ocorridos nesses 500 anos. A manifestação principal ocorreu no local de comemoração onde há uma reserva indígena conhecida como Pataxós, mas outras comunidades indígenas vindas de outras localidades do Brasil também participaram, estimando-se um total de 2.000 índios. Passaram antes pelo Monte Pascoal, local de realização da primeira missa e as tensões logo aumentaram quando 200 policiais militares destruíram um monumento erguido pelos índios no território de Coroa Vermelha, que objetivava fazer memória aos povos extintos.
O monumento era um mapa da América do Sul preenchido por objetos artesanais e simbólicos, erguido ao lado da cruz de metal, onde antes estava a cruz de madeira original utilizada na celebração da primeira missa. Percebemos aqui os três elementos discutidos nas obras, atuantes na contemporaneidade. Os poucos índios restantes da população original protestando, a cruz como símbolo de devoção e memória protegido por lei, e a morte, que a cada dia chega aos índios como a animais em extinção incapazes de sobreviver aos seus predadores.

Considerações finais
Através da arte, no estudo em questão, os autores expõem sua humanidade, ou seja, de certo modo devolvem para o mundo de maneira pessoal suas experiências, segundo uma concepção lukacsiana. Sendo assim, as considerações finais serão sobre os autores como indivíduos, e não apenas sobre suas obras, como escreveu Gombrich.
A análise comparativa das obras nos permite compreender o tempo presente, mas para isso evocamos o passado. Os eventos ocorridos durante um longo processo histórico tão bem detalhado por Darcy Ribeiro desencadearam a crise na Europa que obrigou os portugueses se lançarem em busca de alternativas além mar. No século XVI os portugueses encontram o Brasil e celebram a primeira missa conforme relato de Caminha para o rei de Portugal. No século XIX em pleno movimento nacionalista onde o Brasil fabricava sua imagem de nação, Meirelles realiza sua obra com base na carta de Caminha, conforme o artigo de Menk. No século XX outro movimento ganhava força, e o comunista Portinari realiza uma obra sobre a primeira missa, mas com outra interpretação, seu pensamento pode ser bem compreendido através das cartas de Andrade. No ano 2000 acontece a comemoração dos 500 anos de descobrimento do Brasil e protestos indígenas inflamam por todo país, conforme artigo mencionado.
Atualmente, em 2014 neste estudo buscamos através de pesquisas, documentos e discussões bibliográficas, elucidar um pouco mais sobre este tema ainda sombrio, repleto de enigmas e conflitos ocultos, mas que o historiador precisa reconstruir utilizando a força extraída de suas mais profundas inquietações. Se não deixamos de lado essa paixão pelo compreender a história, de igual forma também não deixaremos de lado os recursos técnicos disponíveis para a realização deste trabalho.
A Primeira Missa no Brasil de fato representou mais que um ato religioso. Meirelles e Portinari deixam isso muito claro em suas obras. A questão indígena que parece tão fantasiosa para um, é para outro a extinção de povos e tomada de territórios em nome do progresso. A cruz representada pelos dois artistas exalta a classe dominante, mas também denuncia a força ideológica utilizada como alienação. E o impacto de dois povos tão diferentes traria de uma forma ou de outra a submissão do mais simples ao mais sofisticado.
Os dois artistas expressam em suas pinturas o mesmo momento histórico, porém as pinturas diferem nos elementos visuais e nas cenas apresentadas de acordo com o que é singular a cada um dos dois. Suas expressões sobre a primeira missa no Brasil demonstram particularidades importantíssimas se quisermos compreender as relações de poder exercidas em nosso país em momentos diferentes. Menk parece estar certo quando diz que a primeira missa legitima a aquisição de novas terras para o reino de Portugal e Darcy Ribeiro também ao afirmar que hoje ainda há uma massa de trabalhadores explorada e ofendida por uma minoria que está no poder.
As particularidades expressas por Meirelles e Portinari se completam mesmo que os dois artistas pertençam a séculos diferentes. As duas pinturas permitem-nos ver uma celebração de poder, seja religioso ou político. O conflito entre as duas obras é justamente o que os dois artistas tem de diferenças em seus valores ideológicos, porém na essência expressam a celebração da classe dominante neste evento, e esta é a principal particularidade contida nas duas obras. O que há de mais diferente no objetivo dos dois artistas é que enquanto Meirelles exalta, Portinari denuncia.


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